Hoje, é possível registrar um celular pré-pago no nome de
qualquer pessoa —basta ter o número do CPF. Isso tem levado inocentes a serem
investigados e até presos pela polícia porque tiveram dados usados por
criminosos para habilitar telefones.
Para evitar a confusão, as operadoras de
telefonia celular que atuam no Brasil serão obrigadas pela Anatel (Agência
Nacional de Telecomunicações) a implantar, até 2020, mudanças no sistema de
cadastro de usuários.
Esse tipo de falha permite, ainda, que empresas de marketing
digital se valham, por exemplo, de dados de idosos para cadastrar linhas e
fazer disparar mensagens pelo WhatsApp.
No pacote de mudanças apresentado pelas
próprias empresas de telefonia está a criação de um portal na internet com
informações ao público, maior rigor para cadastro remoto de linhas e até a
implantação de sistema de validação pela digital do usuário.
A exigência de mudanças ocorre após fiscalização da Anatel,
no final de 2017, em 157 milhões de usuários de pré-pago. Entre os problemas
mais recorrentes encontrados estão CPF inválidos, cadastros incompletos ou sem
dado algum e cadastros com mais de 50 linhas em um único CPF.
A alteração deve afetar 229 milhões de celulares no país
—número maior do que o da própria população—, em especial as linhas de telefone
celular pré-pago, que representam mais da metade do total.
Uma das medidas previstas é a modificação do serviço de
checagem de dados do cliente, que exigirá mais informações do usuário para habilitação
de linhas além do CPF.
“[O novo sistema] vai identificar se aquele CPF é válido, se
é de alguém que ainda está vivo ou algum de falecido”, diz Gustavo Santana
Borges, o gerente de Controle de Obrigações de Qualidade da Anatel.
Outra medida prevista é a criação de um portal na internet
onde ficarão concentradas as informações ao usuário, como quantas linhas estão
cadastradas por nome.
“Hoje o consumidor teria que ir em cada operadora e
investigar”, diz Borges. Esse portal deve ser implantado com um serviço de limpeza em
cadastros indevidos.
Até o final do próximo ano está previsto ainda o
cadastramento de linhas por meio de um sistema que vai usar a identidade
digital, a ser implantada pelo governo federal.
A ideia é que a habilitação use a digital do usuário, como
ocorre atualmente em movimentações bancárias.
Para o engenheiro Eduardo Tube, presidente da Teleco
(empresa de consultoria do setor), exigir muitos dados para a habilitação de
celulares pré-pagos vai contra a filosofia do próprio serviço.
“No pós-pago faz sentido porque vai haver uma conta. Já o
pré-pago é um celular descartável”, diz.” “É claro que nenhum bandido vai se
cadastrar no pré-pago no nome dele e começar a usar.”
O advogado Luiz Flávio Gomes, eleito deputado federal pelo
PSB, disse que vê a necessidade de uma regulamentação por parte da polícia para
que as prisões não aconteçam com base apenas nesses cadastros. Ele diz que vai
propor uma modificação da lei para tipificar quem registra celular no CPF de terceiros.
CONFUNDIDO, FUNILEIRO
TEVE A CASA INVADIDA POR POLICIAIS
Ainda amanhecia quando policiais armados invadiram a casa do
funileiro Carlos Roberto Jusviaki, 26, em Curitiba.
“Eu perguntava: ‘O que está acontecendo?’ Eles diziam:
‘Espera que você já vai saber’”, disse ter ouvido ao ser levado para uma
cadeia, onde ficaria por 30 dias sem visitas.
Só na audiência de custódia, 15 dias após chegar à prisão, é
que ele soube qual era seu crime: seu número de CPF havia sido usado no
cadastro de um celular, em São Paulo, flagrado pela polícia no comércio de
drogas pela internet.
Um levantamento da Polícia Civil de São Paulo com base em
dados de seis grandes operações realizadas desde 2016 (Ethos, Echelon,
Protocolo Fantasma, Transponder, Sanctorum e Pacamã), quase todas envolvendo
integrantes da facção PCC, aponta o tamanho da confusão.
O resultado revela que mais de 90% das cerca de 500 linhas
telefônicas usadas pelos criminosos estavam em nome do chamado “terceiro
inocente”: pessoa sem nenhuma ligação com o suspeito ou com o crime mas que
teve dados usados em cadastro de celulares.
“Se a pessoa continuar colocando créditos no celular, pode
falar por anos em nome de terceiros inocentes e praticar crimes. Temos casos de
homicídios e vários outros tipos de crime imputados a pessoas inocentes”, diz o
delegado Éverson Contelli, responsável pelo levantamento e que sugere mudança
na lei.
Na pesquisa de Contelli, chama atenção o caso de uma
fisioterapeuta de Florianópolis que teve o CPF usado para registrar 42
celulares pelo país.
Uma dessas linhas, segundo investigação, era usada por um
criminoso do PCC, responsável pelo comando da facção na região Sul do país.
Em outro caso, o nome de um estudante de medicina de São
Paulo foi usado para a habilitação de um telefone apreendido pela polícia em
poder de criminoso do PCC.
A polícia também descobriu que, além de buscar cadastro da
Receita Federal, os criminosos também procuravam fotos das pessoas cujos CPFs
usariam para ilustrar perfis em redes sociais. Um dos bancos de dados usados
era o site da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
O vice-presidente da OAB-SP, Ricardo Toledo Santos Filho,
disse considerar a situação preocupante pela fragilidade do sistema de cadastro
telefônico e pela precipitação da polícia em pedir a prisão de suspeitos.
Jusviaki foi preso duas vezes. A primeira, em 15 de março de
2018, a pedido da Polícia Civil de Brasília, com base nos crimes cometidos a
partir de um celular de número de DDD 11 usado por uma mulher.
Sem saber da ação da Polícia Civil do DF, a Polícia Federal
de São Paulo também investigava tráfico pela internet cometido pelo dono do
mesmo número de telefone e em 12 de fevereiro deste ano cumpriu ordem de prisão
contra ele.
“Quando eles chegaram, eu perguntei: ‘Eu vou ser preso de
novo?”, conta. “Eu disse: ‘Então, vamos logo’, porque tinha vizinho olhando. É
muito duro passar por isso tudo.”
A Polícia Federal convenceu a Justiça da necessidade da
prisão de Jusviaki dizendo que o rapaz já tinha sido preso em março de 2018 — a
pedido da Polícia Civil de Brasília.
Mas em fevereiro as investigações contra Jusviaki já tinham
sido arquivadas em Brasília por falta de provas, com aval da Promotoria local.
Procurada, a Polícia Civil de Brasília disse que “tomou as
medidas que cabíveis e adequadas à investigação”. “Todas as cautelares foram
deferidas pela Justiça, após manifestação do Ministério Público”, diz, em nota.
O delegado Ulysses Fernandes Luz, responsável pelo pedido de
prisão, não quis falar com a Folha nem explicou, via assessoria, que elementos
tinha contra Jusviaki além de um cadastro em seu nome.
A Polícia Federal de São Paulo não quis comentar o caso.
“Meu advogado viu que ainda há mais três linhas registradas
em meu nome. Sabe lá o que pode acontecer mais pra frente”, disse. *Folha de São Paulo
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