A Justiça Federal decidiu suspender o abate de jumentos no
Brasil para exportação à China. A medida foi tomada por 10 dos 13 desembargadores
da Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em
Brasília, na noite da quinta-feira (3).
Desde 2016, o Brasil passou a exportar o couro do animal para a produção de um remédio conhecido como ejiao, bastante popular na China.
Não há comprovação científica de que ele funcione, mas, no país asiático, o
ejiao é utilizado com a promessa de tratar diversos problemas de saúde, como
menstruação irregular, anemia, insônia e até impotência sexual. Ele é consumido
de várias maneiras, como em chás e bolos.
Para fabricar o produto, os animais são recolhidos da
caatinga e de zonas rurais do Nordeste em grande volume, sem que exista uma
cadeia de produção que renove o rebanho, como ocorre com o gado.
Ou seja, eles são abatidos em uma velocidade maior do que a capacidade de reprodução, o que acendeu um alerta de que a população de jegues pode ser eliminada nos próximos ano no Nordeste.
No final de dezembro, uma reportagem da BBC News Brasil
mostrou que cidades do centro-sul da Bahia se tornaram dependentes economicamente
do abate de jumentos.
No entanto, o setor cresceu em consonância com o aumento da
fome e da pobreza em uma região historicamente já castigada por esses problemas,
além de denúncias de maus-tratos, contaminação de animais por mormo (uma doença
mortal), trabalho análogo à escravidão e abandono de jegues à morte por
inanição.
A decisão do TRF-1 é mais um passo jurídico de uma ação que
corre desde 2018, quando entidades de defesa do direito dos animais entraram
com um processo solicitando a proibição. Em um primeiro momento, a Justiça da
Bahia concedeu uma liminar proibindo os abates no Estado.
Em 2019, porém, a medida foi suspensa por Kassio Nunes
Marques, hoje ministro do STF e à época desembargador do TRF-1. Ele voltou a
liberar os abates atendendo a um pedido dos governos estadual e federal, além
prefeitura de Amargosa, onde funciona o maior frigorífico de abates de jegues
do país.
O magistrado concordou com o argumento de que a proibição do
mercado prejudicava a economia do município e da Bahia.
Nesta quinta-feira, a maioria dos desembargadores do TRF-1
refutou esse argumento, alegando que a prefeitura de Amargosa não conseguiu
provar os supostos prejuízos econômicos provocados pela suspensão inicial do
setor.
"Não se demonstrou (no argumento) a existência de uma
grave lesão à economia pública", afirmou o desembargador Carlos Eduardo
Moreira Alves, que votou pela nova suspensão. Segundo ele, também não ficou
ficou comprovada a existência de uma cadeia produtiva para abate no Brasil, o
que coloca a espécie em risco. "Não há noticia de que haja rastreabilidade
em cadeias de produção ou algo semelhante com que ocorre com o abate de
gados", disse.
Já o desembargador Carlos Augusto Pires Brandão, que também votou pela suspensão, citou a importância cultural do jumento para o Nordeste brasileiro.
"O que se vê nos autos é que a exportação é proveniente
de um animal que está muito associado às nossa tradições, à nossa colonização e
à nossa inserção no interior do Brasil", disse.
"Há músicas e poemas sobre o jumento. Há uma música do
Luiz Gonzaga (Apologia ao Jumento) que fala que o animal é nosso irmão, que
relata essa proximidade do jumento como um animal de estimação. Imagina se a
gente começa a exportar carne de cachorro e de gato para outras culturas que
não têm essa proximidade com o animal", disse.
A decisão foi comemorada por ativistas que há anos lutam
contra o mercado de ejiao no Brasil.
"Recebemos a decisão com muita felicidade, com
sentimento de que vale a pena lutar pelo que é o correto. O abate de jumentos é
inaceitável do ponto de vista ético, ambiental e cultural. Não existe motivo
para exterminar um animal que faz parte da nossa história, uma espécie com
tantos laços afetivos com o Brasil", diz a advogada Gislane Brandão, coordenadora-geral
da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, uma das entidades que entrou na
Justiça contra o setor.
A suspensão do abate vale para todo território nacional, mas
ainda cabe recurso. Além disso, há outros processos na Justiça e investigações
do Ministério Público sobre esse mercado.
Mercado lucrativo
Estima-se que o mercado de ejiao movimente bilhões de
dólares por ano. Uma peça de couro de jumento, por exemplo, pode ser vendida na
China por até U$ 4 mil (cerca de R$ 22,6 mil) — uma caixa de ejiao sai por R$
750.
No Brasil, os valores do comércio são bem menores — jegues
são negociados por R$ 20 no sertão do Nordeste, e depois repassados aos
chineses, conforme mostrou a BBC News Brasil em dezembro.
A alta demanda e lucratividade fizeram com que empresários
chineses mirassem o Brasil, país com uma população abundante de jegues — em
2013, havia 900 mil deles, a maior parte no Nordeste, segundo o IBGE. Hoje, de
acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), há por
volta de 400 mil. Entre 2010 e 2014, o Brasil abateu 1 mil jumentos — já entre
2015 e 2019, foram 91,6 mil.
Em relatório recente, o Conselho Regional de Medicina
Veterinária da Bahia (CRMV-BA) afirmou que, sem uma cadeia produtiva, o ritmo
dos abates e a demanda chinesa pelo ejiao poderiam praticamente dizimar a
população de jumentos no Nordeste em poucos anos.
Apenas em Amargosa, são abatidos 4,8 mil animais por mês —
57,6 mil por ano. Há outros dois frigoríficos com permissão para a atividade
nas cidades de Simões Filho e Itapetinga, também na Bahia.
Com 40 mil habitantes, Amargosa é o ponto final do jumento nordestino
antes de ele ser abatido e exportado para virar remédio na China. Desde 2017, o
município abriga o frigorífico Frinordeste, local onde mais se abate jegues no
país. Ele é comandado pelos chineses Ran Yang e Zhen Yongwei, ambos residentes
no exterior, e pelo brasileiro Alex Franco Bastos.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, o prefeito de
Amargosa, Júlio Pinheiro (PT), afirmou que o setor é o terceiro maior
empregador da cidade, atrás só da própria prefeitura e de uma fábrica de
sapatos. Para ele, o recente mercado é fundamental para a economia do
município, gerando cerca de 150 empregos diretos, além de renda e impostos.
"O frigorífico têm ajudado na geração de renda e de
empregos diretos, ainda mais num momento tão complicado da economia do país,
sobretudo com a pandemia. O frigorífico tem sido a sustentação de centenas de
famílias aqui na cidade", disse Pinheiro.
A BBC News Brasil tentou ouvir o frigorífico, mas não obteve
resposta.
População de jegues
O mercado de ejiao é acusado por autoridades e ativistas de
atuar de maneira extrativista. Ou seja, ele vai até onde os animais são
abundantes, abate a maior parte da população e deixa o local. Ele afetou
inclusive a população de jumentos na própria China, segundo um estudo dos
pesquisadores Richard Bennett e Simone Pfuderer, da Universidade de Reading, no
Reino Unido.
Em 2000, o país tinha por volta de 9 milhões de cabeças — em
2016, o número caiu para 2 milhões. Em 2000, a produção anual de eijiao era de
1,2 tonelada — já em 2016, foram 5 toneladas. Estima-se que o país precise de 5
milhões de peles de jumento por ano, mas, desde 2017, o estoque interno não é mais
capaz de suprir a demanda.
A solução de parte do empresariado chinês foi buscar animais em outros países, como o Quirguistão, que perdeu 57% de seu rebanho desde 2017, segundo estudo da ONG The Donkey Sanctuary. Países como Mali, Gana e Etiópia recentemente proibiram o abate, embora ele ainda ocorra clandestinamente. *G1
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